quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Algumas questões sobre corpo, virgindade e “mulheres-fruta”

"Então não importa o que uma mulher faça ou alcance, seu valor ainda depende de sua aparência. Não se aprecia o intelecto da mulher. É tudo relacionado ao corpo, não à mente."

"Como qualquer adolescente, Catarina também queria ter sua primeira experiência sexual com um grande amor. Atualmente, com 20 anos de idade, deixou essa história de contos de fadas de lado e está leiloando sua virgindade na web.” 

“Suelem Aline Mendes da Silva, a Mulher Pêra, candidata a vereadora pelo PT do B em São Paulo, esboçou sua mais nova tática para atrair o eleitorado paulistano para suas bases eleitoreiras. Após atingir a marca de 50 mil seguidores no Twitter, a concorrente a uma cadeira na Câmara da capital divulgou em seu site uma foto em que aparece numa posição ousada, com o número escrito no bumbum – e pedindo votos.

O primeiro trecho pertence ao documentário “Miss Representation”, de 2011, que versa sobre o tratamento da imagem da mulher na mídia estadunidense.  O segundo é um pedaço de uma notícia recente que gerou grande repercussão nas redes sociais e fora delas. Já o terceiro corresponde a um fato acontecido nas últimas eleições municipais. Embora diferentes, os três trechos tratam, no fim, de uma só coisa: os limites da utilização dos corpos (dos outros).

Nós, seres contemporâneos, racionais, culturais, lógicos, habilidosos e inteligentes, dotados de telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor, sentimos necessidade de controlar os corpos de outrem - principalmente se este outro for uma mulher. E não se precisa ir muito longe para comprovar isto: basta acessar um portal de notícias qualquer e olhar rapidamente os comentários. Ou conversar com algumas pessoas sobre a Marcha das Vadias. Ou sentar em um bar e ouvir os comentários sobre a moça de top e shortinho que acabou de passar. Pontos extras se a moça estiver fora dos padrões normativos – se não for alta e magra, por exemplo.

Para muitos, exibir ou vender partes proibidas do corpo além dos “limites das quatro paredes” é um artifício baixo, imoral e vulgar, que desvaloriza a mulher e envergonha todos os que estão a sua volta. Por que, então, algumas pessoas decidem dispor livremente de seus corpos (na mídia ou não), e por que outras pessoas não querem esses mesmos corpos públicos nem autônomos?

É preciso pensar em duas coisas: a utilização autônoma do próprio corpo, como real posse de si mesmo, e a subjugação do corpo ao sistema em que está inserido. Explico-me melhor através de um exemplo: Catarina, ao leiloar sua virgindade na internet, o fez por vontade própria, porque é e se sente dona efetiva de seu corpo e sua vontade, ou o fez porque existe um mercado que anseia pelo seu corpo e por sua virgindade?

A mulher virgem é pura, superior, santa. A virgem encarna o eterno mistério feminino. Já nos disse Simone de Beauvoir, no clássico Segundo Sexo, que a virgem, “...ora temida pelo homem, ora desejada e até exigida, ela se apresenta como a forma mais acabada do mistério feminino.” Muitos viram que Catarina colocou sua virgindade em leilão, mas quantos atentaram para o fato de que há, também, um homem na mesma situação? Quantos sites se dignaram a revelar essa informação? O russo Alexander Stepanov, de 21 anos, está leiloando sua virgindade, mas os lances que recebeu, quando comparados com os da brasileira, são baixíssimos: de acordo com o site Virgins Wanted, o portal do leilão, a virgindade dela já recebeu lances de $255.000, enquanto a dele parou em $2.000.

Não há nada de natural nessa diferença na atribuição de valores: a virgindade feminina não é mais valiosa que a virgindade masculina. Os que objetam isso com “uma chave que abre vários cadeados é útil, mas um cadeado que abre com várias chaves é inútil”, esquecem que a) estamos falando sobre seres humanos com vontades, não sobre objetos inanimados, b) sexo não é necessariamente reprodução (muito menos só penetrativo e heterossexual) e c) essa ideia consegue ser desrespeitosa para qualquer lado que aponte, porque é um dos principais expoentes da série dos argumentos “dois pesos e duas medidas”. Os mesmos que acreditam na “pureza e castidade femininas” e no “legítimo uso masculino da liberdade”, que separam as mulheres em “para transar” e “para casar”, condenam, ao mesmo tempo, o “não” e o “sim” para o sexo de acordo com sua vontade – isso, claro, se pararem para escutar o “não” e o “sim”.

Ou seja: a autonomia e a sujeição estão, nessa situação, intimamente ligadas. Publiciza-se o privado porque se quer, ou porque a adequação à realidade pede. Talvez ambos. Mas o que merece destaque é o paradoxo da relação entre privado e público: os mesmos que querem ver querem esconder; querem o corpo ao seu alcance, mas, ao mesmo tempo, longe de si. Daí que o que transforma um corpo em vulgar não é o uso que se faz dele, porque o corpo em si não é vulgar. Vulgar é o valor que atribuímos ao corpo que não nos apetece, ou que não queiramos que nos apeteça. É a nossa visão simplista - e frequentemente elitista - que transforma uma dita “mulher-fruta” em imoral, e uma modelo internacional em ícone de beleza e classe, quando utilizam a mesma roupa ou não utilizam roupa alguma.

Nem todo uso do corpo quer ser objetificação, mesmo que termine sendo. Resta saber se é mesmo importante julgar se uma determinada exposição (ou a venda, ou a visão, ou o reconhecimento de existência) do corpo é devida ou indevida, através da análise dos motivos. Afinal, a que isso leva, além do fortalecimento de pré-conceitos e a oposições sem sentido entre beleza e inteligência, por exemplo? Talvez devêssemos pensar mais na pressão que esse sistema que anseia por corpos exerce sobre as pessoas, do que nos corpos que se oferecem consensualmente. Afinal, como já nos disse Valesca,

"Tem gente que diz que mostrar o corpo no palco, como eu faço, é também uma forma de submissão. Mas não estou nem aí. O corpo é meu e faço o que quiser com ele e com a minha sensualidade. O problema é meu. Ninguém tem nada a ver com isso."

 

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Carta de repúdio contra matéria publicada no jornal Folha de São Paulo dia 24 de setembro de 2012

No dia 24 de setembro de 2012, a Folha de São Paulo publicou uma infeliz reportagem sobre o que considerava serem indicadores de tendências conservadoras e tendências liberais em relação a temas polêmicos da atualidade, entre eles a homossexualidade (foto abaixo). Segue transcrita a carta de repúdio enviada pelo G8-G à Folha, posicionando-se contrariamente apontando o erro terminológico na escolha da palavra "homossexualismo", bem como contra a rasa e discriminatória bipolarização da sociedade que a reportagem se propunha a fazer. 




Caríssimos e Caríssimas editores e editoras da Folha de São Paulo,

Nós, do G8-Generalizando, Grupo dos Direitos da Mulher e de Gênero do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (SAJU/UFRGS)¹, através da presente carta, objetivamos demonstrar nosso pesar sobre o que julgamos uma inapropriada escolha do termo "homossexualismo", bem como do contexto em que está inserido, em reportagem publicada no dia 24 de setembro de 2012.  Importante ressaltar que a presente carta não se trata de uma tentativa de impor algum tipo de “verdade”, mas sim ampliar o debate trazido na reportagem para um outro enfoque, na busca de um pensamento crítico e renovador acerca das questões de gênero.
Talvez, o primeiro enfoque que deve ser dado, antes de adentrarmos na questão da reportagem propriamente dita, é uma reflexão acerca de como termos e expressões carregam uma força maior do que muitas vezes a imaginada pelo interlocutor. Desse modo, gostaríamos de ressaltar que todas as tentativas de diminuição do discurso crítico com expressões como “ditadura do politicamente correto” não atacam a questão central do problema, mas tentam diminuir aquele que ataca. Desse modo, vemos que há uma redução do discurso a apontamentos que nada tem a ver com o tema. Acreditamos que a utilização de determinadas expressões, cujas origens são as mais diversas, são apenas uma ferramenta de reprodução de discursos opressores a minorias. Por isso, rechaçamos de pronto qualquer tipo de contra-argumento que não ataque nossas fundamentações, mas a bandeira que, com dificuldade e coragem, carregamos.
A reportagem em questão visava a diferenciar em dois grupos diferentes a população. Tal divisão consistia em setorar a sociedade em apenas dois grupos: os conservadores e os liberais. Primeiramente, acreditamos que dividir uma sociedade pluralista e democrática em apenas dois grandes grupos é de tamanho reducionismo que há o risco de afrontas a disseminação de novas ideias, por não se encaixarem em determinado grupo, criando-se uma parcela que estaria à margem do debate social.
A reportagem faz referência ao tratamento que estes dois setores dão à questão da orientação sexual. Havia duas afirmações (ou, ao menos, a reportagem faz alusão a apenas duas) com a qual o entrevistado ou entrevistada deveria concordar. O primeiro problema já pode ser visto na própria definição da temática. O uso do termo “homossexualismo”, além de desatualizado, é carregado de um caráter ofensivo, carregado de preconceitos que perfizeram (e perfazem) a questão da sexualidade. Até 1974, a expressão constava no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais como uma patologia. O verbete foi retirado do manual, pois, desde os anos 1950, sabia-se que a homossexualidade não implicava diferenciações psicológicas. Há de se destacar que essa visão não foi, ainda, completamente superada, inclusive sendo pauta de projeto de lei em nosso Congresso Nacional.
É importante ressaltar que rotular determinado indivíduo por doente mental tem implicações muito sérias para seu desenvolvimento social. “Chamamos pessoas de doentes fisicamente quando o funcionamento de seu corpo viola certas normas anatômicas e fisiológicas; de forma análoga, chamamos de mentalmente insanas as pessoas cuja conduta pessoal viola certas normas éticas, políticas e sociais” (SZASZ, Thomas, 1980, p.29). Ou seja, tratar alguém por doente mental é excluí-lo da sociedade, entender que este viola um conjunto de normas informais que regem o viver. Tal visão é consubstanciada na própria ideia de manicômio, que segrega aqueles que são, supostamente, doentes mentais. Ao nosso ver, a utilização do termo que designa uma doença apenas auxilia a ideia de que a homossexualidade é, ao fim e ao cabo, uma patologia a ser curada e que os homossexuais são um grupo que violam algum tipo de norma de convivência.
Ademais, ressaltamos que as duas opções mostradas na reportagem são, em realidade, igualmente discriminatórias. A afirmação dos (ditos) liberais, ao conter a palavra aceitar, denota, na realidade, uma falta de liberdade, visto que expressa não uma relação de igualdade, mas de superioridade. O ato de tolerar a existência do outro é tão ruim quanto desencorajá-la, vide a opção oposta sugerida pela pesquisa. Segundo José Saramago, “a intolerância é péssima, mas a tolerância não é tão boa quanto parece”. Enquanto a opção conservadora da enquete, que propõe que a sociedade deve “desencorajar” o “homossexualismo”, incita uma ação repressiva e preconceituosa frente às minorias.  
Não é função da sociedade nem do Estado opinar sobre a orientação sexual dos indivíduos integrantes da população, quanto menos “aceitar” ou “desencorajar”, conforme sugerido pelo periódico em enquete. Em uma sociedade democrática apenas se convive com os demais integrantes, não ficando a cargo de ninguém aceitar, (des)autorizar determinado grupo ou comportamento.
Por fim, gostaríamos de destacar que a divisão binária de diversos problemas sociais deve ser sempre evitada. Ao dizer, por exemplo que a pobreza ou a) está ligada à falta de oportunidades iguais ou b) ligada à preguiça das pessoas, a reportagem desmerece qualquer análise sociológica séria a respeito do tema.
Agradecemos pela atenção,
Cordialmente,
G8-Generalizando

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

GUEST POST: Nesse National Coming Out Day, não deixe a empatia no armário



Ontem foi o National Coming Out Day - o dia nacional de "sair do armário". A iniciativa é feita para trazer ao Brasil o movimento sobre o tema, que é feito desde 11 de outubro de 1988, nos EUA, e é celebrado também em países como Austrália, Canadá e Alemanha. A proposta levantada aqui não é determinar um dia para se sair do armário, mas sim levantar o debate sobre a importância (ou não) de mostrar-se publicamente como "diferente".

“Todxs têm que se assumir.”
 “O mau do movimento LGBTQ são xs gays/trans que não se assumem.”
“Tem que ter coragem pra viver e ser feliz.”

Hoje é o National Coming Out Day - dia nacional de sair do armário - e o tenho ouvido muito isso. Não só hoje, são falas comuns, e me entristecem. Entendo a iniciativa de quem deseja felicidade dxs LGBTQ, mas gostaria de pedir um pouco mais de empatia e de compreensão. Vamos, por favor, lembrar que se assumir com segurança é um privilégio que nem todxs têm - e que exigir isso, em nome de um movimento social ou, pior, fazê-lo em tom paternalista, como quem sabe o que é melhor para x outrx, é injusto pra dizer o mínimo. 

Com a palavra privilégio não pretendo desmerecer de maneira nenhuma o sofrimento e a coragem que eu imagino que o ato de se assumir exige de qualquer umx, em qualquer classe, cultura ou ambiente familiar. Viver a identidade sempre exige sacrifício, e o sacrifício feito por nós é sempre o maior - e tudo bem. Sei que é difícil olhar para a própria vida e se enxergar umx privilegiadx, nossa vida sempre é a norma. Mas, nesse dia, peço menos dedos apontados àquelxs que não têm condições de assumir quem são. Seja por medo ou real possibilidade de serem expulsxs de casa, de serem agredidxs na rua, de perderem o amor da família, de serem rejeitadxs na comunidade em que vivem - por medo ou real possibilidade de algum desses exemplos, de todos ou de nenhum.

Não devia ser novidade que tem quem pague o preço da própria identidade com a vida. Ou com o emprego, com a carreira, com o isolamento dos amigos e dos familiares, com a integridade física e psicológica. É ingênuo, sinto dizer, afirmar que só a felicidade aguarda para além da porta do armário. Pensamento otimista, no máximo. Aos que conseguiram e se encontraram do outro lado, toda a felicidade do mundo - mas não são delxs que falo aqui. 

Cabe a nós, assumidxs e aliadxs privilegiadxs, que podemos viver nossas identidades e ideologias com um mínimo de segurança, lutar pra construir um mundo em que TODXS possam ser quem são, sem medo. Nesse National Coming Out Day, que se celebre xs amigxs que estão fora do armário e que se apóie, sem julgamentos, xs que ainda estão. Que fiquem segurxs até que o lado de fora possa recebê-lxs. Hoje e sempre, que se apontem menos dedos e se estendam mais as mãos.

Natália Otto, estudante de jornalismo.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Retrospectiva 2012/1


 primeiro semestre de 2012 foi, sem dúvida, um período de muito crescimento para o G8-Generalizando. Por meio de uma série de intervenções e atividades articuladas com a comunidade e com os movimento sociais, marcamos ainda mais fortemente nossa posição de combate às opressões de gênero e às discriminações de qualquer espécie. Dá uma olhada no que rolou no semestre passado e fica ligadx no que vem por aí!